Filosofar é preciso
por SERGIO MATTOS GUERRA (meu irmão!)
Vale a pena ler !!!!É comum ouvirmos hoje em dia que não há mais necessidade de filosofar.
"A Filosofia hoje é nada", brincou uma dramaturga brasileira na década de 90. Os arautos dessa modernidade afirmam que o importante é realizar-se, divertir-se, viver momentos alegres com familiares e amigos, viver plenamente o hoje, ser feliz. Quando se permitem filosofar, refugiam-se em alguma religião que lhes apresenta um menu de respostas prontas para todas as magnas perguntas da vida. Criam um "Deus" antropomórfico a quem julgam conhecer e com quem estabelecem pactos que lhes darão uma vida segura e feliz aqui na terra e um pós-morte de imortal júbilo.
Mas quando somos atingidos por uma tragédia como este último desastre do vôo da TAM, todas as nossas frágeis noções do que é ser feliz se estilhaçam na furiosa explosão dos acontecimentos. O nosso ente querido, que até ontem vivia feliz e seguro de que nada de mal iria lhe acontecer (já que as tragédias só acontecem com os outros e com os entes queridos dos outros) encontra-se hoje morto, carbonizado, irreconhecível, extinto, silencioso e ausente.
A nossa rotina corriqueira e banal é repentinamente mergulhada em desespero e estupor. Por mais que tenhamos sido felizes até ontem, hoje esta felicidade roubada já não vale mais nada.
Não nos conforta. Pelo contrário: quanto mais doce tenha sido nosso ontem de alegria e aconchego, mais cortante e amarga é nossa miséria depois do episódio trágico
("Em toda a adversidade do destino, a condição que gera mais infelicidade é o fato de se ter sido feliz ").A religião também empalidece e os religiosos se dividem: os que tiveram seus entes queridos salvos da catástrofe rejubilam-se e, em arroubos de cegueira egoísta, louvam a Deus por ter sido tão bondoso com eles. Os que perderam seus amados gritam e revoltam-se contra os humanos que possam ter causado a tragédia, numa busca frenética por culpados. Não se vê nenhum deles agradecer a Deus pelo ocorrido, embora a Bíblia afirme que em tudo deve-se dar graças a Deus. Em outras palavras, tornam-se ateus, apesar dos habituais clichês religiosos que todos dizem nessas horas: "Foi a vontade de Deus", "não chore, ela está num lugar melhor", "um dia iremos nos reencontrar".
É numa hora como essas que brilha um fato tão antigo mas tão atual: a filosofia não morreu.
E nunca morrerá.
Simplesmente porque o homem nasceu para filosofar.
Ele tem a necessidade de se exercitar constantemente na arte de fazer as perguntas máximas da existência: "Quem sou eu?", "de onde vim e para onde vou?", "o que posso conhecer e o que devo fazer para conhecer?", "existe algo imortal em mim que não seja destruído pela morte?", "o que é o tempo?", "o que é real e o que não passa de ilusão?", "o que é a felicidade e como a poderei encontrar?", "há um Deus?", "é possível conhecê-lo?", "por que eu sou como sou e as coisas são como são?", "o que é possível mudar e o que tenho que aceitar?". O ato e o hábito de fazer estas perguntas é mais que simplesmente uma inclinação humana: é nossa vocação.
O exercício dessas indagações desenvolve os poderosos "músculos" do discernimento, e ao longo de muitos anos de prática, pode conferir a grande jóia da existência humana: a SABEDORIA.
A sabedoria não virá do estudo de livros e escrituras, nem da aceitação de dogmas religiosos, mas da profunda observação da vida aliada ao lento e paciente exercício de filosofar. Só a sabedoria, cultivada com humildade e paixão, será capaz de nos confortar de dentro do nosso peito. Só ela nos armará para vencer qualquer embate da vida e nos fará olhar para eles com serenidade e desapego. Só a sabedoria nos impedirá de enlouquecer se tudo o que tivermos for tirado de nós. Porque a sabedoria é, ela mesma, a única coisa nossa que não poderá ser tirada de nós. E não será isso a verdadeira e única felicidade? Todavia, poucas pessoas estão interessadas em buscar a sabedoria. Muitos filósofos nos ensinaram isso com suas próprias vidas e, principalmente, com suas mortes.
Mas o primeiro que me vem à cabeça é Boécio (Anicius Manlius Torquatus Severinus Boetius -- Roma, c.475/480 - Ticino, 524). Como filósofo platônico, estadista e teólogo romano, Boécio foi o último pensador latino a compreender o grego, sendo, portanto, a única fonte européia sobre esses textos digna de crédito, em sua época. Traduziu o Organon, de Aristóteles, e resumiu vários tratados sobre matemática, lógica e teologia. Sob o reinado de Teodorico, foi investido em altas funções administrativas, foi cônsul e magister palatii. Dando crédito a uma intriga política, o rei mandou executá-lo cruelmente em Pavia, em 525, depois de privá-lo do seu lar, suas propriedades e seus familiares, submetendo-o a uma longa prisão e muitas sessões de tortura.Foi na prisão que Boécio escreveu De Consolatione Philosophiae ( A Consolação da Filosofia) pouco antes de ser brutalmente executado.
Nessa obra-prima da literatura e do pensamento europeu, Boécio coloca-se na condição de um doente, por estar se perguntando de que lhe valeram tantos anos de filosofia e de princípios, se sua vida terminava como a de um malfeitor comum, sem conforto, sem afeto, sem integridade física. Então, no auge do seu devaneio ele tem uma visão de que a própria Filosofia, personificada em uma Dama de imortal encanto, vem até ele em sua cela e com ele dialoga sobre as palpitantes questões que o inquietam.
Todo esse sublime diálogo ele relata em A Consolação da Filosofia , onde vêm à baila os problemas do mundo, de Deus, da felicidade, da Providência, do destino, do livre arbítrio e, sobretudo, a questão do mal e da justiça divina. A Senhora Divina leva-o a compreender que, mesmo tendo perdido tudo e sofrendo dores atrozes, ele ainda pode e deve ser feliz, pois a verdadeira felicidade não pode ser roubada ou confiscada de nós por nada nem ninguém.
Ao final do poético diálogo, o filósofo não mais se encontra perplexo ou perdido. Ele está preparado para viver e morrer, tendo compreendido plenamente seu destino, abraçando sua sorte como um precioso tesouro. Este pequeno livro influenciou profundamente as maiores personalidades do pensamento e da arte européia, como Chaucer e Dante.
É verdade que pouco se fala da filosofia na rotina corriqueira dos homens e mulheres de hoje em dia. Como afirmou Bertrand Russell, o consultório da psicanálise é um dos últimos redutos onde ainda se pratica a maiêutica de Sócrates.
Mas as pessoas ainda se assustam com a psicanálise, taxando-a de tratamento para loucos, e preferem entregar suas mentes e seu dinheiro aos pastores de suas igrejas ou aos gurus da auto-ajuda, ignorando que não existe outra salvação ou auto-ajuda possível senão fazer um longo e profundo mergulho em si mesmo.
Que bom seria se filosofássemos mais. Que diminuíssemos um pouco o contato com a realidade para aumentar a análise desse contato, nas palavras de Fernando Pessoa no seu Livro do Desassossego. Que nos divertíssemos e ríssemos e desfrutássemos do convívio dos nossos amados sim, mas que buscássemos com igual empenho um pouco de solidão para compreender mais a natureza, o universo, nossas sensações, nossas emoções, nossas potencialidades, nosso EU.
Filosofando, tornamo-nos mais fortes, mais políticos, mais atuantes,mais felizes, mais espitiruais. Quem sabe assim, se um dia o Destino nos tirar aquilo que mais adoramos, em nossa hora mais escura a Majestosa Senhora Filosofia se digne vir ter conosco na restrita cela do nosso desespero, remova as ilusões dos nossos olhos e, consolando-nos e sorrindo, nos diga:
"Você é feliz!"